O sapateiro e a mulher


                                                      Ilustração de Martinho Dias
 
 

O sapateiro real Frutuoso Fernandes foi sentar-se a trabalhar fora de casa, sob as arcadas do pátio da cisterna. Ali ao menos deixava de ouvir a sua Joaquina a infernizá-lo com choradeiras, a pedir-lhe que a deixasse ir saltar as fogueiras de S. João. 

-- Era a coisa de que eu mais gostava, marido! 

Passado um bocado sentiu-a fechar a porta. Lá ia ela, ligeira como de costume, subindo a escadaria que levava aos aposentos da senhora infanta. O mais certo é que daí passasse aos aposentos dos senhores infantes mais novos. Costumava coçar-lhes o pé com um gancho, antes da sesta. 

Para dizer a verdade, a ele, Frutuoso Fernandes até convinham aquelas andanças da Joaquina pelo paço real. Porque lá em cima ela ajudava a desembrulhar as bonecas que a infanta D. Francisca recebia de Paris, toucadas, vestidas e calçadas à última moda, e depois à noite vinha industriá-lo:  

-- Marido, tu toma-me atenção que o feitio dos tacões mudou... 

 Ora, ora quanto a isso não havia problema. Ele, Frutuoso Fernandes, sapateiro real, copiava todas as modas, fosse para o rei fosse para a senhora infanta sua irmã. Tanto talhava cabedal como seda e veludo. A única coisa que o incomodava, era o calor. Nem ali à sombra das arcadas se sentia bem, temia sujar de suor a chinelinha de seda azul que tinha entre mãos.

Entretido a coser, apanhou com um chapadão de água pela cabeça que lhe deixou os piolhos a saltar de susto.
O pátio reboava de gargalhadas, com o pessoal menor a refrescar-se à roda da cisterna. Pajens pretinhos de farda vermelha e verde (1) despejavam alegremente baldadas uns contra os outros.
Ao descobrir que a chinela preciosa se molhara, Frutuoso Fernandes ficou capaz de os matar:
-- Diabos, calaceiros, moinantes, chegai-vos cá que eu vos ensino!
Atirou-lhes com uma tesoura -- oh malvada tesoura, só para o atormentar resolveu embater no arco de ferro por cima da cisterna, dar uma pirueta no ar e mergulhar na vertical ao encontro da água fresca! Já lá vinha o porteiro do pátio, todo desengonçado. Os pajens fugiam, gritando qualquer coisa que Frutuoso Fernandes, com a raiva, não percebeu bem:
-- ... lhoso!
Provavelmente tinham chamado piolhoso ao porteiro.
Antes que anoitecesse, Frutuoso Fernandes foi apresentar a obra a Sua Majestade, uns sapatos de biqueira quadrada. Mas o senhor D. João V mal os olhou.  Era novinho ainda, só dezoito anos, nuns dias estava completamente alegre, noutros completamente triste. Nessa véspera de S. João mandara cerrar as janelas, para não o incomodarem os festejos do povo.
Frutuoso Fernandes sentiu-se melhor quando se apanhou cá fora, na antecâmara. Cruzou-se com o cabeleireiro, o qual não levou a bem que um simples bate-sola que não tinha direito a usar espada tivesse sido recebido antes dele. À sua passagem fez um trejeito de ódio, mexendo os lábios:
--... lhoso!
"Se calhar está a chamar piolhoso a el-rei. A mim não, que nunca lhe fiz mal!", pensou Frutuoso Fernandes, apertando ao peito a bolsa onde levava as chinelinhas de seda azul-pavão destinadas à senhora infanta.
Nos aposentos dela o cheiro a perfume de jasmim atordoava. As damas só não morriam sufocadas porque a Joaquina as estava abanando com um alto leque de plumas. De resto, estava-se bem ali. Muita risota, muita prata pela mesa, rosas misturadas com compotas vermelhas... Numa travessa de arroz-doce o cozinheiro desenhara a pó de canela uma coroa e um nome: Dona Francisca. Ai, aquela infanta menina era o ídolo das cozinhas. Se um dia casasse com um rei estrangeiro, levaria longe a fama dos doces de Portugal. Contudo era caprichosa:
-- Esta chinela está mais pequena que a outra-- declarou ela.
Frutuoso Fernandes juntou as chinelas sola contra sola, pausadamente. Eram iguaizinhas.
As damas juntaram-se a observar. Queriam por força achar algum defeito, para se divertirem.
-- A biqueira da esquerda é mais estreita! -- decidiu a dama D. Bárbara.
Bastou aproximar as biqueiras: idênticas, pois claro. Frutuoso Fernandes sentia-se triunfar. A D. Bárbara, essa girafa, podia ser filha de marquês, mas de sapatos não percebia patavina.
-- Uma chinela foi molhada, outra não -- disse a Joaquina de repente, apontando as manchas na seda.
Aí Frutuoso Fernandes teve de se resignar. Ó danada mulher, que não conseguia ter tento na língua!
-- Faz outras chinelas -- mandou a infanta. -- E leva-me essas, não as quero.
Em trinta e tal anos de ofício, era a primeira vez que uma obra de Frutuoso Fernandes era devolvida.
Alta noite, foi-se pôr à borda da cisterna, largo, lanzudo, sem conseguir dormir. A Joaquina veio buscá-lo, muito sequinha de carnes, com o manto por cima da camisa e a trança solta ao dependurão.
-- Deixa-me sossegado, traidora.
-- Ora essa! Se calhar não tive razão! Disse alguma mentira, marido?
-- Traidora!
-- Anda, vem deitar-te, vá... Não te queres vir deitar?...
-- Larga-me, traidora. 
-- Se eu sou traidora, tu és piolhoso...
-- Sou quê?...
-- Piolhoso!
-- Sou quê?...
-- Piolhoso, piolhoso, piolhoso!
-- Ai sim, sou piolhoso? Pois marchas para dentro da água, como a tesoura.
Pegou nela e mergulhou-a até aos pés.
-- Sou piolhoso?
-- És e tornas a ser.
Mergulhou-a até à cinta.
-- Sou piolhoso?
-- És, és e tornas a ser.
Mergulhou-a até aos ombros.
-- Sou piolhoso?
-- És, és, és e tornas a ser.
Mergulhou-a toda, segura só pela trança.
-- Sempre quero ver agora se me chamas piolhoso. Sou piolhoso?
A Joaquina ergueu os braços da água, pareciam os braços da tesoura. Uniu os polegares e fez estalar as unhas, fingindo que matava piolhos.
O marido largou-a e ela submergiu por completo. A água ficou abrindo círculos sobre círculos. Aflito, Frutuoso Fernandes soltou à pressa o balde e desceu-o, para quando a traidora viesse à tona poder agarrar-se a ele e subir içada pela roldana.
-- Joaquina! Joaquina!
Nada. A água já nem rebolia.
-- Joaquina! Ai que matei a minha rica mulher! Ai a minha santa!
-- Cá... cá... cála-te... pi...pi...piolhoso... -- disse ela, tossindo e cuspindo. Tinha acabado de vir ao de cima.
Como era muito rija, no dia seguinte estava boa.  Frutuoso Fernandes fez o que nunca tinha feito: à noite levou-a a saltar as fogueiras no Terreiro do Paço. 
E assim acabaram enfarruscadas as chinelas novas de cor azul-pavão.
Primeiro demolhadas,
depois chamuscadas,
mal empregadas!
 
(1) As crianças da família real dispunham de "pajens pretinhos", descendentes de antigos escravos do paço real. Em adultos, eles podiam ocupar cargos do serviço interno do paço. No ano de 1707 alguns deles organizaram um motim nas estribarias reais.

Esta é uma história tradicional que já deve ter assustado milhões de crianças portuguesas. Discute-a com os teus colegas e com o/a professor/a.  Aponta os atos de violência. ocorridos. Quem teve razão?