ORELHA E MEIA, O GATO DAS BOTAS



Era uma vez um moinho de velas paradas, no alto de um monte. O moleiro tinha morrido e agora os seus três filhos faziam partilhas, sentados a uma mesa manca. O assunto ficou resolvido num instante.
-- O moinho é para mim, com todos os seus pertences! — declarou o mais velho.
-- Nesse caso, eu fico com o burro – disse o do meio.
-- Então e eu?! Fico com quê?— perguntou o mais novo, aflito.       
-- Tu ficas com o Orelha e Meia. Podes fazer um casaco com a pele dele, ah, ah, ah! – responderam-lhe os irmãos, apontando para o gato, um bicho tigrado muito feio, com uma orelha rasgada numa luta. 
 Estava sentado a um canto a lamber os baixos da barriga e a escutar a conversa. Percebeu logo que teria de mudar de casa quando ouviu o dono pedir:
-- Deixem-me ficar convosco, queridos manos... Eu faço-vos o comer...
-- Isso é que era bom!— enfureceu-se o irmão mais velho. Para te esqueceres do sal e esturrares tudo, como de costume?...
-- Conto-vos histórias ao serão...
-- Para dizer a verdade, estamos fartos das tuas histórias parvas cheias de palavreado que ninguém entende – confessou o irmão do meio. E depois aconselhou-o a ir tentar a sorte no reino vizinho que ficava a um dia ou dois de viagem, sempre a direito. Lá gostavam de palavras caras.
-- Estás a ver aquela montanha azul cor de veneno ao fundo do horizonte? Trepas por ela acima, desces do outro lado, a seguir atravessas as terras do Ogre e pronto, estás lá.  
“O quê? Trepar a uma montanha azul cor de veneno? E depois atravessar os domínios dum Ogre comedor de gente?” Só de pensar nisso o rapaz tremia. Sentia-se desamparado, sem protecção nem abrigo.
Mas não tinha alternativa, os irmãos esperavam de pé que ele se decidisse a partir. Limpando as lágrimas, arrumou na mochila os seus poucos livros, alguma roupa e um pedaço de pão; a seguir, com um aceno, saiu porta fora sem sequer lhe passar pela cabeça levar o gato. Mesmo assim, o bicho saltou logo atrás dele, escapando aos outros dois que o queriam rasteirar só por maldade.
 “Coitadito do meu dono, que vai tão triste...”
Quando o alcançou, pôs-se a caminhar a seu lado, alçado sobre as patas traseiras como uma pessoa, a ver se o fazia rir. Ai senhores, só ele sabia o que aquilo lhe custava!... Finalmente, aleluia!, o dono virou-se para trás; mas não foi para o gabar, não.
-- Achas-te com muita graça?...
Nem parecia o mesmo. Pelo caminho adiante não parava de resmungar, sempre a chamar-lhe Orelha e Meia, coisa que nunca fizera antes.
-- Um desgraçado dum orelha e meia com o pêlo todo esturrado de dormir ao sol!... Nem para fazer um barrete serve quanto mais para um casaco!... 
Aquilo eram unhadas a rasgar o peito do gato. Esteve quase-quase a voltar para trás, mas depois acabou por desculpar o dono. “Coitadito, é o desespero que o faz falar... Ele sempre foi meu amigo, ensinou-me a andar de pé quando eu era pequeno, fazia-me festas, às vezes dava-me uma pinguinha de leite, um rabinho de sardinha... Coitadito, não posso abandoná-lo neste momento difícil!”
Um atrás do outro, horas a fio, cada qual metido nos seus pensamentos, dono e gato alcançaram enfim a montanha azul, a célebre montanha azul cor de veneno que defendia os domínios do Ogre. O dia acabara há muito, mas nem assim eles podiam parar, obrigados a romper caminho pela encosta bravia acima, por entre silvados que despedaçavam roupa e pêlo. Animais agachados surgiam de todo o lado para os espreitar --e logo desapareciam aos saltos, na escuridão...
Até que aos poucos o matagal perdeu a força. Gato e dono tinham alcançado o cume do monte. De pé sobre um penhasco, podiam avistar a paisagem da outra encosta, iluminada pelo sol nascente. Talvez estivessem sonhando: searas e vinhas a perder de vista, pomares floridos... Toda a planície lá em baixo era um jardim cultivado. Muito ao longe, no fim da estrada de areia, na última volta do rio, levantava-se um palácio branco, rodeado de árvores. Alguma coisa cintilava no alto da sua cúpula caiada. Era um O! era a letra O, a letra inicial de Ogre.
 “Como é que é possível que um monstro viva num lugar assim? Como é possível?”, repetia o filho do moleiro de si para si, maravilhado. Esquecera a fadiga e a raiva. 
O gato, esse, dava pulos, de peitaça aberta ao vento. Às tantas pôs-se a bradar:
-- Vida nova, meu amo! 
Por essa é que o rapaz não esperava. Quase se engasgou:
-- O quê, então tu agora falas?!...
-- Foi por termos chegado ao país das histórias, meu amo.   
Não só falava como conseguia andar de pé à vontadinha sem lhe doer a barriga. Sentia-se capaz de ir longe, atravessar toda a planície até às colinas do lado oposto, onde o reino vizinho começava. Ah que colinas suaves, fáceis como almofadões! 
Bom, mas para já ainda havia que descer até às terras do Ogre. 
-- Ei! — berrou ele para um homem e uma mulher curvados a sachar lá em baixo no campo. Eles nem levantaram a cabeça, não tinham ouvido nada. 
Gato e dono recomeçaram a andar e logo na primeira curva deram de caras com um barracão: nem mais nem menos que uma oficina de sapateiro, com banca, ferramentas, couros e calçado. Sapateiro é que não havia. O bilhete que ele deixara na porta estava manchado, a desfazer-se de velhice: “Volto já, fui entregar calçado ao Senhor D. Ogre”.  Ao ler aquilo, o rapaz perdeu a vontade de prosseguir a jornada. 
Entretanto o gato examinava as prateleiras de calçado, à procura de qualquer coisinha a seu gosto. Acabou por escolher umas botas altas de espadachim que quase lhe chegavam à cinta. Quando o viu naquela figura, o dono teve mesmo de rir-se apesar das preocupações: Ah, ah, ah! Uh, uh, uh!
-- Ria-se, ria-se, meu amo, que eu volto lá acima ao mato caçar, para termos de comer.
E sem medo nenhum tornou atrás, a embrenhar-se nos silvados da montanha azul cor de veneno. Ia caçar coelhos, já que o dono, coitadito, não apreciava ratos. 
Sabia muito bem o que tinha de fazer: armadilhar o saco entre as ramagens mais rasteiras e depois esperar escondido até que um coelho resolvesse investigar o que havia naquela estranha toca. O mato estava crivado de coelhos, todos a quererem ser os primeiros a entrar no saco. 
De volta à oficina do sapateiro, o gato cozinhou para si e para o dono um coelho só. Os outros pô-los de lado.
-- Estes aqui, meu amo, são para uma pessoa que eu cá sei.
Depois de jantar, quando o rapaz bocejava, cansado de tanto ter comido, o gato saiu-se com uma pergunta esquisita:
-- O que é que lhe soa melhor, meu amo: Perlifum, Perlifunfum, ou Carabás?
-- Hã?...
-- Tem razão, meu amo, Carabás soa melhor.
Passado um bocado despediu-se. Ia de viagem, só regressaria no dia seguinte.
-- Vossa mercê, meu amo,  fique aí quietinho até eu voltar e não se rale com nada. 
Caminhando na escuridão com os seus olhos amarelos acesos, atravessou as colinas e chegou ao palácio à hora em que o rei tomava o pequeno-almoço.
Os guardas, pasmados, deixaram-no entrar quando ele declarou que vinha da parte do poderoso marquês de Carabás, vassalo da fronteira leste. Tique, tique, tique, lá foi ele pelos corredores de mármore do palácio, muito aprumado, como se o saco dos coelhos lhe não pesasse nada. Só o largou aos pés do rei, com uma grande vénia:
-- Saiba Vossa Majestade que o mais fiel dos seus súbditos, o senhor Marquês de Carabás, lhe manda esta caça de presente.
Antes que o demorassem, foi logo saindo às arrecuas, deixando o rei e os cortesãos a examinarem aqueles super-coelhos que vinham mesmo a calhar para reforçar as despensas do castelo, esvaziadas por muitos anos de guerra.
-- Marquês de Carabás? Nunca ouvi falar... – admirava-se o rei. – Mas se ele diz que é meu súbdito, é capaz de ser verdade.
-- Deve ser um descendente do ilustre cavaleiro de Arrabás, que se tornou independente no tempo do décimo avô de Vossa Majestade — explicou o duque mordomo-mor. – De Arrabás a Carabás, a diferença não é grande... 
Como estava preocupado com o dono, o Gato das Botas fez a viagem de regresso a toda a velocidade, primeiro pela estrada real e depois mais cautelosamente pelos carreiros escondidos das colinas. 
Felizmente não havia novidade. O rapaz estava como de costume sentado à mesa, a copiar palavras difíceis do dicionário para o caderno.
--  Escreva, escreva, meu amo, que ainda há-de ser marquês.   
Daí por diante, não se passava semana sem o Gato das Botas viajar até ao palácio real. 
Mal o via chegar, o rei já nem o deixava acabar a vénia nem começar o discurso do “Saiba Vossa Majestade que o mais fiel dos seus súbditos, o senhor Marquês de Carabás, lhe manda esta caça de presente”. Perguntava-lhe logo o que trazia: 
-- São coelhos ou lebres?
-- Saiba Vossa Majestade que são lebres.
-- Tão macias! – exclamava a princesa, afagando com a sua mão cheia de anéis a barriga branca dos bichos.   
-- Saiba Vossa Alteza, senhora Princesa, que estão assim lustrosas por só comerem trigo. Isto porque nos domínios do senhor marquês de Carabás, meu amo, os trigais não têm começo nem fim. Sem querer exagerar, aquilo é uma farturinha pegada!
Estas informações deram ao rei vontade de visitar as terras do marquês no final das colheitas, que era a melhor época para cobrar impostos.
-- Diz lá ao teu amo, que um dia destes o vamos visitar para lhe agradecer.
Depois de tal ouvir, o Gato das Botas não sossegou mais. Até já se aventurava a caçar em campo aberto pela infindável planície do Ogre. Aqui e além cruzava-se com camponeses, mas assim que os cumprimentava: “-- Bom-dia, passaram bem?”, eles largavam a fugir. Grandes palermas.
-- Por que é que fogem? Olhem para mim, sou um gato, não sou nenhum tigre.
Ninguém lhe respondia. Só duma vez é que uma miúda gritou de longe, antes que a mãe o calasse com um sopapo:
-- És o Ogre, és o Ogre disfarçado! Ele disfarça-se do que quer.
Já se acabara o mês de Agosto quando finalmente o Gato das Botas escutou música de clarins. Era o rei que viera passear para aquelas bandas, com guarda a cavalo e grande cortejo de coches.
O gato correu a chamar o dono:
-- Meu amo, salte já daí, venha comigo!
-- Para onde?
-- Lá para baixo, para a planície!
-- E o Ogre?...
-- Agora não é tempo de ter medo, meu amo. Corra, mexa-me essas pernas, que temos de chegar à ponte antes do rei. 
Assim que lá chegaram, o gato disse:
-- Dispa-se, meu amo, e atire-se ao rio.
-- Para quê?!
-- Faça como lhe digo, e é se quer ter boa fortuna!! – bradou o gato, fora de si.  
Mal viu o rapaz na água, escondeu-lhe a roupa esfarrapada e largou a correr direito à estrada, ao encontro das nuvens de pó dos coches. 
-- Ai real senhor, que grande desgraça! Ai o senhor marquês de Carabás! Ai o meu rico amo! Ai que fico só no mundo! Ai! Ai!
--  Pára de te arrepelares! Que é que foi que aconteceu ao marquês? – perguntou o rei, debruçado da portinhola do coche.
--  Foi tomar banho ao rio e uns ladrões roubaram-lhe a roupa! É aquele rapaz além quase a afogar-se! Ai o meu rico amo! Ai que estou desgraçado!
O filho do moleiro aguardava, metido no rio até ao peito, cercado por libelinhas atraídas pelos seus cabelos claros. 
--  Por que é que ele não sai da água?
Sim, por que não saía ele da água? Bastava-lhe dar uns passos até à margem.
-- Saiba Vossa Majestade que ele está nuzinho em pêlo. Uns ladrões roubaram-lhe a roupa e a bolsa e tudo, sem eu ter tempo de acudir. Ninguém diga que está bem neste mundo! 
-- Mandem um dos meus fatos ao marquês – ordenou o rei.
O pesadíssimo carro das reais roupas vinha na cauda do cortejo, logo a seguir ao carro das arcas dos impostos. Foi um instante enquanto os pajens correram até à margem com uma fatiota completa, incluindo sapatos de fivela, meias de seda, chapéu de plumas, espadim e luvas. E todos aqueles luxos perfumados serviam à maravilha ao filho do moleiro, apenas os calções destoavam, largos de mais, pois tinham sido talhados para a pança do rei.
Foi a princesa que achou a solução. Desatou a sua faixa de seda e mandou que a levassem ao senhor marquês de Carabás.
Que belo rapaz ele era. E tão eloquente, a agradecer de joelho em terra a bondade de Sua Majestade:
-- Atlante excelso, monarca maior de todo o orbe!
Durante os dez minutos que durou o discurso nem os pássaros cantaram, embatucados com tanta pavra difícil. 
Entretanto o Gato das Botas já ia longe, a correr pelos campos. Cada vez que encontrava ceifeiros nas searas, antes que eles pudessem fugir, gritava-lhes com voz grossa de ogre:
-- Ouçam bem! El-rei vai passar por aqui, livrem-se de lhes dizer que estas terras são minhas! Digam-lhe que são do marquês de Carabás! Perceberam? Marquês de Carabás! Se não transformo-vos em pedra!  
E aos vindimadores espalhados pelos vinhedos repetia o mesmo ou pior:
-- Nada de dizerem ao rei que estas terras são minhas! Digam-lhe que são do marquês de Carabás! Ouviram? Marquês de Carabás! Marquês de Ca-ra-bás! Se não transformo-vos em pedra para sempre! Nunca mais mexem um dedo sequer! Marquês de Ca-ra-bás, hã?! Marquês de Ca-ra-bás!
Só acalmou quando chegou ao palácio do Ogre. Entrou de mansinho, pisando os tapetes com cuidado. O Ogre parecia dormir a sesta, espapaçado numa poltrona, com um olho meio-fechado e o outro meio-aberto, à maneira dos ogres.
-- Senhor D. Ogre – murmurou o Gato. 
O Ogre abriu ambos os olhos, incrédulo: “Só me faltava mais esta, um gatarrão falante com botas de espadachim... Isto deve ser partida do meu primo Ogrino. É melhor não me dar por achado”.
-- Senhor D. Ogre – continuou o gato. – Vim de muito longe para ter o prazer de conhecer Vossa Excelência e lhe fazer uma pergunta.
-- Que pergunta? – disse o Ogre, inclinando-se para o Gato e quase o derrubando com o seu hálito a carniça podre.
-- É verdade que Vossa Excelência se consegue transformar em qualquer animal que seja?
Ouviu-se um clique e zás: de um momento para o outro já não havia ogre nenhum na poltrona. Em vez disso havia um leão a todo o comprimento do sofá.  
Pelo sim pelo não, o Gato enfiou-se debaixo da poltrona vazia e de lá é que falou:
-- Grande prodígio esse, senhor D. Ogre, transformar-se assim num leão. Mas ainda seria mais extraordinário se Vossa Excelência se transformasse num rato. Num ratinho muito pequenino, então, isso é que era! Mas claro, deve ser muito custoso, mesmo para Vossa Excelência...  
Palavras não eram ditas, ouviu-se novo clique e zás: desapareceu o leão, deixando em seu lugar um ratinho que o Gato das Botas logo abocanhou, estraçalhou e engoliu, sem precisar de fazer clique nem nada. 
Bem almoçado, lambendo os beiços, dirigiu-se à cozinha, para preparar um banquete. Entretanto, o cortejo real avançava pela planície. O calor era tanto que os músicos desafinavam e os cavalos fatigados avançavam a passo, hipnotizados pelo amarelo das searas de ambos os lados da estrada.
Os ceifeiros acorriam de longe, ajoelhavam-se na berma, assustados.   
-- Boa gente, – perguntava-lhes o rei – a quem pertencem estas terras?
-- Ao senhor marquês de Carabás.
Por onde iam passando, fossem searas ou vinhas, a resposta dos camponeses era sempre a mesma: tudo pertencia ao marquês de Carabás.
-- É rico, o moço... – dizia o rei à princesa.   
Ela acenava que sim, muito corada. Desconfiava que o pai a trouxera com ele de viagem de propósito para a casar com o marquês e poder assim anexar à Coroa novos territórios.
-- Ai Paizinho, que lindo palácio branco, além, com um anel de ouro na cúpula!...
As grades do parque eram de ouro também. Alguém as tinha aberto de par em par.
Em breve o cortejo entrava pela alameda de tílias. O ar tornava-se delicioso de respirar, com o aroma das rosas misturando-se com um cheiro a ervilhas guisadas.  
À porta principal estava o Gato das Botas, para dar as boas-vindas ao rei, à princesa e aos fidalgos da real comitiva, entre os quais se incluía o senhor marquês de Carabás, seu amo.
-- Isto aqui parece o palácio do sultão da Turquia! – exclamava o rei, caminhando admirado de sala em sala até ao salão do banquete. Nem ele próprio possuía uma morada assim magnífica.  
Sobre a mesa havia pão, água, vinho, ervilhas guisadas, terrinas de rojões e conservas de frutas a brilharem de cores extraordinárias na baixela de prata do Ogre.
Toda a gente comia com vontade menos o marquês de Carabás, que habituado à sua colher de pau não sabia como usar tantos talheres. Olhava de esguelha para a princesa: bem bonita, com o seu narizinho de águia real. Ela também olhava para ele:
-- Não tem apetite, senhor marquês?
-- Senhora, a luz do vossos olhos me sustenta.
Pela mesa adiante tudo era alegria. O rei tinha decidido experimentar os vinhos velhos do palácio. Por alturas da sobremesa já se tinha esquecido totalmente das boas maneiras.
-- Duque, chama-me o capelão para casar aqui estes dois.
A princesa protestou pouco:
-- Oh paizinho, com franqueza...
Contente estava ela por lhe caber um noivo como o marquês de Carabás, desajeitado de modos, sim, mas tão bem falante, com aquele sotaque engraçado da fronteira leste. E depois era um acto patriótico, fazer voltar à Coroa tão ricos domínios.
Só meses mais tarde é que o filho do moleiro, agora feito marquês e genro do rei, se lembrou de quanto devia ao Gato das Botas:
-- Gato, desculpa lá ter-te chamado Orelha e Meia...
-- Está desculpado, meu amo – respondeu-lhe o gato, de boa vontade. E voltou para o terraço, para continuar a dormir a sesta ao sol. O seu peito enchia-se de compaixão pelo amo que, coitadito, era apenas um ser humano, incapaz da dedicação total dos gatos.
Lá em baixo no jardim, à sombra, brincavam gatinhos de raça, de pêlo fofo. Pertenciam às damas da princesa. Alguns ostentavam uma orelha ratada, porque ter uma orelha despedaçada tornara-se o cúmulo da moda.
O Gato das Botas ria-se dessas vaidades. Pensava nos tempos que se aproximavam e arquitectava já a melhor maneira de salvar o amo quando fosse proclamada a república.

 
                                                          FIM

Querem ouvir a melhor leitura possível da 1ª parte desta história? Escutem Ana Isabel Gonçalves e Paula Pina no programa "Palavras de bolso", da Antena 2. Divirtam-se!

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