SAPE-GATO



Numa noite de Janeiro um rato da família Sape, bem conhecida pelos seus dotes musicais, regressava a casa com uma pandeireta às costas. 
Acabava de participar numa serenata e por isso não era de admirar que caminhasse sonhadoramente, sem olhar para os lados, todo entretido a assobiar baixinho. A dado momento, porém, alguma coisa o fez calar-se: um cheiro escuro a atravessar a brancura do luar... um cheiro a fera! Ainda conseguiu ver de relance uma sombra projectada no muro, mas já não teve tempo de fugir. O Gato do Pátio caíra-lhe em cima com a força duma vaga marinha de dez metros de altura.
O rato estrebuchou quanto pôde, sem ver nada. Mas então ocorreu uma espécie de milagre: o gato largou-o e pôs-se a tropeçar de roda, com um barulho de chocalho. Na sofreguidão do ataque, cravara as garras  na pandeireta! Agora tentava livrar-se dela, arrastando-a no empedrado até a espatifar. Estava tão assustado que já nem se lembrava das suas artes de caçador.
O rato disparou para a toca. Era muito tarde, na sala subterrânea, deliciosamente morna, todos dormiam, à excepção do avô, que estava a mascar grainhas de passas de uva, reclinado no seu sofá de trapos.
-- Donde vens tu a correr, meu neto?
-- Fui assaltado pelo Gato do Pátio. 
O avô comoveu-se: era uma glória para a família Sape que um membro seu escapasse a um gato. E então ao brutamontes do Gato do Pátio que só com uma patada era capaz de matar um boi!...
-- Estou muito orgulhoso de ti, meu neto. 
Em vez de se alegrar, o rato chorava.
-- Que é isso, meu neto? Que é que tens? Estás ferido? Dói-te alguma coisa?... Fala!
-- Estou triste porque fiquei sem a minha pandeireta...
Uma pandeireta maravilhosa feita com pele de serpente! Poderia passar-se muito tempo sem que ele voltasse a achar uma pele daquelas... Toda a gente sabe que as serpentes não mudam de pele todos os dias.  
-- Vamos lá a ver se te posso consolar-- disse-lhe o avô. 
Passando por entre a família adormecida, foi à arca da parede buscar uma velha casca de noz muito especial que tinha um cabo pregado. Atou-lhe seis cordas de tripa bem esticadas e depois fê-las ressoar com a unha do dedo mindinho, a única unha boa que lhe restava. 
-- Grande som! É para ti, meu neto. Espero que sejas digno desta guitarra com a qual eu próprio toquei em serenatas e festivais, e sempre com sucesso.
O jovem rato, todo contente, pôs-se imediatamente a dedilhar o Sape-gato, que era o hino da sua tribo. Saía ao avô, tocava com brio! De um momento para o outro, todos os ratos, ratinhos e ratões da toca despertaram e vieram  chiar em coro aquela melodia que conheciam desde bebés: 
                                      Quando um gato encontra um rato,
                                      foge o rato e corre o gato.
                                      E se o gato apanha o rato,
                                      chora o rato e ri o gato.
                                      Mas se o rato  escapa ao gato,
                                      chora o gato e ri o rato:
                                      "Sape-gato! Sape-gato!
                                      Sape-gato! Sape-gato!"
De cada vez que repetiam o hino, chiavam um bocadinho mais depressa, oh que felicidade! E os mais habilidosos, levantados sobre as patas traseiras, não só chiavam depressa como também representavam a história com as patas de diante: a pata direita a fazer de gato e a pata esquerda a fazer de rato. Quem aguentasse mais tempo sem se enganar, ganhava.

Por falar nisso, há aqui algum menino ou menina que queira recitar o Sape-Gato depressa, com a mão direita a fazer de gato e a mão esquerda a fazer de rato? Também pode ser com a mão direita a fazer de rato e a mão esquerda a fazer de gato.   

                                   


Tomei a liberdade de modificar duas ilustrações de Benjamin Rabier... ("Fables de La Fontaine", Paris, 1906).