S. Joãozinho

 

Entre incensos de churrasco
e foguetes de cerveja,
no alto do seu andor
S. Joãozinho boceja.
Começa a falar sozinho,
ali parado ao calor,
à espera da procissão:
"Então, isto arranca ou não?"...
A seu lado o bom cordeiro,
seu perfeito companheiro,
sorri, calado e suave.
"Que cordeiro mais borrego,
nem sequer responder sabe!!",
irrita-se o S. João.
Não terá jamais sossego
nem que o caruncho se acabe,
e a culpa é da procissão;
"Então, isto arranca ou não?..."

A Tartaruga fala ao Inverno -- texto seguido por uma Reclamação do Cágado

Senhor Inverno, é tremendo,
estou realmente perdendo
os papos e a barbela,
as rugas e as verrugas,
eu que já fui a mais bela
de todas as tartarugas!
E porquê?
Por causa do nevoeiro,
que me deixa a pele macia,
sem escamas nem cieiro!
Por favor, Senhor Inverno,
mande embora o nevoeiro,
traga frio e ventania,
que eu volte a ter rugas rijas
como já tive algum dia!

Reclamação do Cágado 

Esta agora, que faz aqui o meu retrato a ilustrar um texto sobre uma tartaruga?...

Eu não sou nenhuma tartaruga, eu sou um cágado!

Reparem bem: carapaça achatada e pescoço espreitador

para melhor me desenvencilhar em todo o lado, na água doce e na terra.

Eu cá, se o nevoeiro me incomodasse muito, hibernava, 

ficava o assunto arrumado até à primavera.

Uma tartaruga nunca seria capaz de tal despacho. 

Somos a glória de Portugal, nós os cágados!

O gato das 20 riscas

O gato das 20 riscas,

capaz de saltos mortais

à beirinha dos beirais,

andava manco e doente,

os telhados já para nada  

lhe serviam.

Disse-lhes adeus para sempre,

pôs-se à estrada.

Passou a noite ao relento

escondido num quintal 

onde dormiu pouco e mal.

Mas pela manhã que sol quente! 

Tanta lagartixa gorda,

parreiras, um poço velho...

Assim que ele pulou para a borda,

a água escura do fundo

pôs-se a brilhar como um espelho.

Sete caras reflectidas,

sete vidas! Todas dele,

todas juntas, mais que muitas!

A primeira já sumida

e as outras seis a nascer,

luzindo e piscando forte,

como que a querer dizer:

-- Vinte Riscas, boa-sorte!


Os dedos da mão

Os cinco em viagem vão,

os cinco dedos da mão.

Mata-Piolhos cabeçudo,

guloso mais do que a conta,

só pensa em agarrar tudo

que o Fura-Bolos lhe aponta.

Mas Pai-de-Todos gigante

chama-os a ambos para diante

e o mesmo faz Seu-Vizinho:

"--Vamos lá a ter juizinho!"

 

Agora marcham os quatro

ao bater do coração:

"Sim-não, sim-não, sim e não..." 

Um pouco atrás, o Mindinho

super-esfalfadado, coitado,

alça a unhinha no ar:

"-- Falta muito para chegar?..."

A Formiga Rabiga, as suas irmãs gigantas, o coelho Branquinho, a Cabra Cabrês e o Detective Carraça

Pela montanha das Urtigas viajavam três formigas. Iam para muito longe, para a toca do Coelho Branco, que as tinha convidado para jantar daí a um mês.
A montanha das Urtigas tinha má fama. Dizia-se que andava por ali a Cabra Cabrês. Por isso as duas formigas maiores olhavam para todos os lados, com medo de serem assaltadas. A formiga pequenina, chamada Rabiga, também ia a olhar para os lados, mas era à procura de comida.
-- Ai, quem me dera umas migas... -- disse ela às outras formigas.
-- Esta menina está sempre com fome! Olhe, coma urtigas! Quem tem fome, urtigas come!
Prosseguiram a subida e ao fim de mais três semanas a  roer folhas de urtigas, a formiga pequenina chamou as manas formigas: Psst... Psst...
-- Que foi? Que é que houve? 
-- Cheira-me a migas de couve com broa...
-- Esta menina não está boa da cabeça!
Puseram-se a andar depressa, para alcançarem o cume. Mas lá no alto a Rabiga fez a fita do costume:
-- Estou mais que farta de urtigas! Daqui não saio sem migas!
-- Veja se atina, menina, não fale outra vez em migas! Siga lá pelo carreirinho, lá em baixo já é a toca do Branquinho. Olhe para ele aos pulos, a acenar com as orelhas para nós!
Nem se pode explicar a alegria do Coelho e das suas amigas  formigas por se reunirem  de novo. Foram logo à horta buscar couves para cozinhar umas migas saborosas. O pior é que ao regressarem acharam entaipada a porta da toca.
-- Quem está aí dentro? -- perguntou o Coelho.
-- É a Cabra Cabrês, que te salta em cima  e te faz em três!
Ao ouvirem o vozeirão da Cabra, as duas formigas grandes encolheram -- e o coelho, pumba!, deixou cair as couves. Mas a Formiga Rabiga, essa, avançou. Não conseguia suportar que lhe atrasassem o seu jantar de migas:
-- Saia daí, Dona Cabrês...
-- Saio se eu quiser! Eu sou a Cabra Cabrês, ao Coelho faço-o em três só com um soco! E a ti, Formiga Rabiga, faço-te em quatro só com um sopapo!
A Formiga Rabiga calou-se muito bem calada. Entrou por uma frincha da porta, trepou pela cabra acima e pic!, mordeu-lhe a barriga.
Por essa é que a Cabrês não esperava. Saltou da toca para fora como uma mola! Largou aos pinotes a direito, sempre a eito... Fugiu, fugiu, nunca mais ninguém a viu!  Mas houve quem dissesse que ela tinha ido refugiar-se na serra do Gerês.
 
Assim que ouviu falar desta história, o Detective Carraça (o célebre Detective Carraça, que as mentiras estralhaça!),  foi logo interrogar a Formiga Rabiga. Falava baixinho, muito sorrateiro:
-- Super-Formiga Rabiga, sou o Detective Carraça, que as mentiras estralhaça. Desculpe Vossa Excelência a impertinência, mas custa-me a crer que Vossa Excelência, Super-Formiga Rabiga, tenha furado a barriga da Cabra Cabrês. É que eu vejo à evidência que Vossa Excelência não tem nem ferrão, nem dentes nem patas potentes!
-- Detective Carraça, eu não preciso de peças dessas. Eu estico as mandíbulas em bico e pic!, pico.
-- Pica com esses picos? Desculpe Vossa Excelência a impertinência: não acredito.
-- O senhor Carraça não acredita, não?... Então dê-me cá a sua mão, para uma experiência.
-- Ai-hi!... Isso é coisa que se faça? Vossa Excelência precisava de me picar?...
-- Ora, foi uma coceguita no ar, só por graça... Torne cá a sua mãozinha, detective Carraça, torne cá a sua mãozinha que eu esfrego e passa.
 
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As aventuras da Formiga Rabiga e do Detective Carraça continuam:

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Já em 1906 o ilustrador francês Benjamin Rabier tinha retratado a Cabra Cabrês, sem nunca a ter visto nem ter ouvido sequer falar dela! (Fables de La Fontaine, Paris,1906).


Os 4 cantores de Bremen, história decifrada pelo detective Carraça (Continuação de "A Formiga Rabiga, as suas irmãs gigantas, o coelho Branquinho e a Cabra Cabrês")

Lembras-te de a Formiga Rabiga ter ferrado uma picadela ao Detective Carraça?
 
Pois bem, o Detective Carraça (o célebre Detective Carraça que as mentiras estralhaça) nem com a ferroada da Formiga sossegou, sempre a matutar  na invasão da toca do Coelho. Ali havia mistério, achava ele. Resolveu deslocar-se à serra do Gerês de propósito para interrogar a Cabra Cabrês.
Lá estava ela, empoleirada num penedo, entretida a roer a lombada de um livro. Sobressaltou-se ao descobrir o detective Carraça, muito pequenino, metido numa casaca preta de oito mangas.
-- Ah!... Quem é este melro?
Ainda ficou mais admirada quando o ouviu responder.
-- Engenheira Cabra Cabrês, Excelência, não sou nenhum melro, sou o Detective Carraça, que as mentiras estralhaça. Desculpe Vossa Excelência a minha impertinência, mas custa-me a crer que Vossa Excelência, com toda essa corpulência, tenha sido vencida por uma ferroadita de formiga...
-- Eu? Vencida?... Ó detective Carraça, a ferroadita da formiga salvou-me a vida! Eu tinha ido meter o bedelho na toca do coelho e depois fiquei lá entalada, sem poder sair, sem nada! Se não fosse a fraquitolas da Formiga Rabiga, que até é boa rapariga, fazer-me cócegas na barriga, eu morria! Já viu o que era é eu morrer entalada numa toca de coelho?...
-- Estou a ver, Excelência. E depois desse seu momento de imprevidência seguido de um salvamento de emergência, que tal se dá Vossa Excelência aqui no Gerês?
-- Mal. Já não me habituo ao clima de cá de cima. Só verdura e água pura, nada que preste, aqui nem plástico cresce!... O que me valeu foi que achei uns livros velhos. Olhe, Detective Carraça, vou oferecer-lhe um de recordação, para se lembrar de mim. Este aqui, olhe, com  um nome estrangeiro: Os Quatro Cantores de Bremen... Fala de dinheiro, violência, roubalheiras e coisas assim, até parece um filme de acção.
-- "Os Quatro Cantores de Bremen" -- começou o detective Carraça a ler de si para si.
-- Leia em voz alta para eu também ouvir! -- pedinchou a Cabra.  
O detective Carraça teve de inchar o peito para conseguir arranjar fôlego:
Há muito tempo, muito longe daqui, na cidade de Bremen, um burro pelado, um trôpego cão, um gato escaldado e um galo ancião, todos os quatro cantores amadores, para ensaiarem à vontade sem serem corridos à pedrada, resolveram reunir-se num descampado.  
Tinham inventado uma canção nova, a canção dos animais abandonados, cujo refrão era:
-- Não temos eira nem beira, 
nem um dono que nos queira!
Plim, plim, plim, plim!
Não temos eira nem beira!
Tanto cantaram que anoiteceu. Viram uma luzinha ao longe e dirigiram-se para lá. Era uma casa arruinada, toda abafada por trepadeiras. Os quatro cantores -- com o cão, o gato e o galo equilibrados sobre o lombo do burro -- podiam espreitar pela vidraça o que se passava lá dentro. À luz da vela, uns ladrões repartiam os roubos. Quem distribuía era o capitão:
-- Moedas de ouro para ti,
e para ti outras tantas,
e umas para mim também
mas das maiores, ora bem... 
Esmeraldas para ti, 
para ti lindos topázios, 
e para mim rubis gigantes 
com bónus de alguns diamantes... 
O burro bateu a pata no chão a avisar os colegas e a seguir arrombou a porta com outra patada tão forte que a corrente de ar apagou logo a vela. Zum-catrapum-pum-pam! Andava tudo num badanal: o burro, o cão, o gato e o galo tinham saltado sobre os ladrões, com couces, zurros, patadas, cacarejos e bicadas, uivos, miados, latidos, arranhões e bufadelas, repelões e mordidelas nas canelas. 
-- São fantasmas, são fantasmas! -- gritavam os ladrões, fugindo a bom fugir  pela escuridão da noite. E o que gritava mais era o capitão: -- Lá vêm eles atrás de nós!
Qual quê, os quatro cantores de Bremen tinham mais que fazer que perseguir ladrões. Estavam felizes na sua casinha abafada pela hera. Daí para diante, já não passariam frio nem fome e poderiam ensaiar cantigas à vontade: 
-- ... os quatro à nossa maneira, 
sem um dono que nos queira!
Quando acabou de ler, o detective Carraça deu uma palmada no livro. Faltava ali alguma coisa, achava ele. Despediu-se da Cabra e foi a correr investigar.  Investigou, investigou (investigou muito bem, porque ele era o detective Carraça que as mentiras estralhaça) e passados uns dias voltou à Serra do Gerês, para contar à Cabra Cabrês as novidades:
-- Engenheira Cabra Cabrês, Excelência, quanto a mim a história dos Cantores não se passou bem assim... Saiba Vossa Excelência que o que eu apurei à evidência foi que os quatro cantores amadores foram ajudados pela Formiga Rabiga.
-- Foram ajudados pela Formiga Rabiga??
-- Foram ajudados pela Formiga Rabiga que com eles zurrou, ladrou, miou, esgatanhou, mordeu, bufou, arranhou, escouceou, deu bicadas e terríveis caneladas. No meio da confusão ainda houve um ladrão que se defendeu com uma vassoura, e outro que reacendeu a vela, e outro que agarrou num balde e deu um banho de água fria aos cantores amadores e à Super-Rabiga. Ah mas a Super-Formiga-Rabiga não desistiu! Daí a bocado, passou por debaixo da porta e foi de cama em cama picar os ladrões adormecidos: pic-pic, pic-pic, pic-pic... Os ladrões ainda saltaram mais alto que V.ª Excelência no outro dia na toca do Coelho, senhora engenheira! Atravessaram o telhado destelhado e foram aterrar ao outro lado do planeta! Uh... com a Formiga Rabiga ninguém se meta!... 
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As aventuras da Formiga Rabiga, do Detective Carraça e da Cabra Cabrês continuam em:
 

A velhinha, o lobo e a cabaça (Continuação das aventuras da Formiga Rabiga, da Cabra Cabrês e do Detective Carraça)

Na serra do Gerês a Cabra Cabrês tornou a oferecer um dos seus livros velhos ao detective Carraça, que a tinha vindo visitar:
-- Leia, leia, é uma história romântica, mete um casamento e tudo!
O Detective Carraça pôs-se a farejar a capa lambuzada de terra:
-- "A velhinha, o lobo e a cabaça"?... Espero que seja uma história verdadeira, senhora engenheira. Porque a mim só a verdade é que me interessa! Essa é que é essa.
-- Tem alguma coisa contra as histórias românticas?
-- Não, senhora engenheira. Muito agradecido a Vossa Excelência.
Para ter paz e sossego, o detective Carraça foi-se pôr a um canto a ler:
A VELHINHA, O LOBO E A CABAÇA
Ia uma velhinha ao casamento da filha quando a meio da montanha há um lobo que a apanha.
 -- Ó senhor Lobo, não me morda! Deixe-me ir ao casamento da minha filhinha que eu depois volto mais gorda!  
“Esta sujeita se calhar tem razão...”, pensou o lambão do lobo.
-- Podes seguir e não te esqueças de comer muito! 
-- Não, senhor Lobo Mau, não me esqueço... (Ai a minha vida... Ai...ai...ai...) 
-- Ainda estás aí?...-- ralhou-lhe o Lobo. -- Anda, vá, vai! Cá te espero no regresso!
Na festa do casamento, a velhinha comeu, bebeu, dançou, ficou cheia de coragem. Meteu-se numa cabaça e pediu à filha que a rolasse pela encosta, para a viagem ser mais rápida. 
O lobo, que estava à espera, atravessou-se no caminho: 
-- Ouve lá, ó bicho de pau, viste lá em cima uma velha? 
-- Não vi velha nem velhão! Corre, corre, cabacinha! Corre, corre, cabação!

-- Ah-ah! -- gritou o detective Carraça. Acabara de ter uma revelação: aquela história, como tantas outras,  estava mal contada. Despediu-se da Cabra Cabrês e pôs-se imediatamente a caminho, decidido a encontrar-se com a Formiga Rabiga.
Quando a viu, alçou as mãos aos pares, cheio de entusiasmo:
-- Super-Formiga Rabiga, Excelência, queira perdoar a impertinência, chego agora mesmo do Gerês para lhe pedir um esclarecimento sobre a história da cabacinha e do cabação. É que não me cabe aqui na cabecinha que caiba numa cabaça uma velhinha, mesmo pequenininha. Terá tido V. Ex.ª alguma influência neste caso? Terá V. Ex.ª por acaso dado uma ferroada na velhinha para ela encolher e poder caber na cabaça?...
-- Por acaso dei. Mas quando a cabaça parou...
--- ... Já sei. A velhinha voltou ao tamanho normal! (Que lindo final, até estou engasgado). Meninas e meninos que me escutais, sabei que é assim que se investiga: com persistência e firmeza! Desvendada mais uma proeza da Formiga Rabiga e explicada a trapaça da cabaça por mim, detective Carraça que as mentiras estralhaça!

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O sapateiro e a mulher


                                                      Ilustração de Martinho Dias
 
O sapateiro Frutuoso Fernandes, nascido e criado no paço real da Ribeira, foi sentar-se a trabalhar sob as arcadas do pátio da cisterna, num sítio onde há muitos séculos estivera um rinoceronte enjaulado. Ali ao menos não tinha a sua Joaquina a moer-lhe o juízo, a pedir-lhe com voz de cana rachada que a deixasse ir saltar as fogueiras de S. João. 

-- São a coisa melhor de Lisboa! Que é te custava vires comigo, marido da minha alma?... Se viesses comigo havias de gostar...

Passado um bocado sentiu-a fechar a porta. Lá ia ela ligeira, subindo a escadaria que levava aos aposentos da infantazinha D. Francisca. Costumava coçar-lhe o pé com um gancho, à hora da sesta. 

Para dizer a verdade, a ele, Frutuoso Fernandes, até calhava bem que a Joaquina passasse a vida metida lá em cima. Ela ajudava a desembrulhar as bonecas que a infanta D. Francisca recebia de Paris, toucadas, vestidas e calçadas à última moda. E depois à noite, na cozinha, punha-se a industriá-lo, fabricando modelos de sapatos com miolo de pão. Pousava-lhos mesmo ao lado do prato:

-- Maridinho da minha alma, tu toma-me atenção que o feitio dos tacões mudou, estás a ver?... 

Ora, ora quanto a isso não havia problema. Frutuoso Fernandes, sapateiro real, copiava todas as modas, fosse para o rei fosse para a infanta sua irmã. Tanto talhava cabedal como seda e veludo. Só o afligia a caloreira. Nem ali à sombra das arcadas se sentia bem, temia sujar de suor a chinela de seda azul que tinha entre mãos.

Entretido a coser, apanhou com uma chapada de água pela cabeça abaixo -- uma coisa bruta, até os piolhos lhe ficaram a saltar de susto!
O pátio ressoava de gargalhadas, com o pessoal menor a refrescar-se à roda da cisterna. Pajens de farda vermelha e verde (1) despejavam alegremente baldadas uns contra os outros.
Ao descobrir que a chinela preciosa se molhara, Frutuoso Fernandes ficou capaz de os matar:
-- Diabos, calaceiros, moinantes, chegai-vos cá que eu vos ensino!
Atirou-lhes com uma tesoura ferrugenta-- oh malvada tesoura, só para o atormentar resolveu embater no arco de ferro por cima da cisterna! Deu uma pirueta e mergulhou na vertical ao encontro da água fresca! Já lá vinha o porteiro do pátio, todo desengonçado. Os pajens fugiam, gritando qualquer coisa que Frutuoso Fernandes, com a raiva, não percebeu bem:
-- ... lhoso!
Provavelmente tinham chamado piolhoso ao porteiro.
Antes que anoitecesse, Frutuoso Fernandes foi apresentar a obra a Sua Majestade: uns belos sapatos de biqueira quadrada. Mas o senhor D. João V mal os olhou.  Era novito ainda, só dezoito anos, nuns dias estava completamente alegre, noutros completamente triste. Nessa véspera de S. João mandara cerrar as janelas, para não o incomodarem os festejos do povo.
Frutuoso Fernandes sentiu-se melhor quando se apanhou cá fora, na antecâmara. Quase chocou com o cabeleireiro, um sujeito rebocado a pó de arroz, que ao passar lhe rosnou qualquer coisa:
--... lhoso!
"Está danado por eu ter sido recebido primeiro e ele ter ficado à espera. Agora chama piolhoso a el-rei! Já é falta de respeito!", pensava Frutuoso Fernandes enquanto seguia pela galeria. Ainda lhe faltava entregar as chinelinhas de seda azul-pavão, destinadas à senhora infanta D. Francisca, irmã mais nova do rei.
Nos aposentos dela o cheiro a perfume atordoava. As damas só não morriam sufocadas porque a Joaquina as estava abanando com um alto leque de plumas. Mas de resto até se estava bem ali. Muita risota, muita prata pela mesa, rosas misturadas com compotas vermelhas... Numa travessa de arroz-doce havia uma coroa desenhada a pó de canela, com um nome por baixo: Dona Francisca. Ai, aquela infanta menina era o ídolo das cozinhas! Se um dia casasse com um rei estrangeiro, levaria longe a fama dos doces de Portugal. Contudo era caprichosa:
-- Esta chinela está mais pequena que a outra-- declarou ela.
Frutuoso Fernandes juntou as chinelas sola contra sola, pausadamente. Eram iguaizinhas.
As damas juntaram-se a observar. Queriam por força achar algum defeito, para se divertirem.
-- A biqueira da esquerda é mais estreita! -- decidiu a dama D. Bárbara.
Bastou aproximar as biqueiras: idênticas, pois claro. Frutuoso Fernandes sentia-se triunfar. A D. Bárbara podia ser filha de marquês, mas de sapatos não percebia patavina.
-- Uma chinela foi molhada, outra não -- disse a Joaquina de repente, apontando as manchas na seda.
Aí Frutuoso Fernandes teve de se resignar. Ó danada mulher, que não conseguia ter tento na língua!
-- Faz outras chinelas -- mandou a infanta. -- E leva-me essas, não as quero.
Em trinta e tal anos de ofício, era a primeira vez que uma obra de Frutuoso Fernandes era devolvida.
Alta noite, foi-se pôr à borda da cisterna do pátio, largo, lanzudo, sem conseguir dormir. A Joaquina veio buscá-lo, muito sequinha de carnes, com o manto por cima da camisa e a trança solta ao dependurão.
-- Deixa-me sossegado, traidora.
-- Ora essa! Se calhar não tive razão! Disse alguma mentira, marido?
-- Traidora!
-- Anda, vem deitar-te, vá... Não te queres vir deitar?...
-- Larga-me, traidora. 
-- Se eu sou traidora, tu és piolhoso...
-- Sou quê?...
-- Piolhoso!
-- Sou quê?...
-- Piolhoso, piolhoso, piolhoso!
-- Ai sim, sou piolhoso? Pois marchas para dentro da água, como a tesoura.
Pegou nela e mergulhou-a até aos pés. Estava cheio de pressa, de fúria.
-- Sou piolhoso?
-- És e tornas a ser.
Mergulhou-a até à cinta.
-- Sou piolhoso?
-- És, és e tornas a ser.
Mergulhou-a até aos ombros.
-- Sou piolhoso?
-- És, és, és e tornas a ser.
Mergulhou-a toda, da cabeça aos pés, segura só pela trança. Diabo de mulher, oca como a cortiça e mais teimosa que um touro.
-- Sempre quero ver agora se me chamas piolhoso. Sou piolhoso?
A Joaquina ergueu os braços da água, iguaizinhos aos da defunta tesoura. Unindo os polegares, fez estalar as unhas, fingindo matar piolhos.
O marido largou-a e ela submergiu por completo. 
Uma coisa tão súbita que até a água se engasgou, ficou para ali a abrir círculos sobre círculos: oh, oh, oh... Aflito, Frutuoso Fernandes soltou à pressa o balde e desceu-o, para quando a traidora viesse à tona poder agarrar-se a ele e subir içada pela roldana.
-- Joaquina! Ó Joaquina! Joaquinita!
Nada. A água já pouco rebolia.
-- Joaquinita!... Ai que matei a minha rica mulher! Ai a minha santa!
-- Cá... cá... cála-te... -- disse ela, tossindo e cuspindo. Tinha acabado de vir ao de cima.
Como era rija, no dia seguinte estava boa. Frutuoso Fernandes fez o que nunca tinha feito: à noite levou-a a saltar as fogueiras no Terreiro do Paço. 
E assim acabaram enfarruscadas as chinelas novas de cor azul-pavão.
Primeiro demolhadas,
depois chamuscadas,
mal empregadas!
 
(1) As crianças da família real dispunham de "pajens pretinhos", descendentes de antigos escravos do paço. Em adultos, eles podiam ocupar cargos do serviço interno do paço. No ano de 1707 alguns deles organizaram um motim nas estribarias reais.

Esta é uma história tradicional que já deve ter assustado milhões de crianças portuguesas. Discute-a com os teus colegas e com o/a professor/a.  Aponta os atos de violência ocorridos. Quem teve culpa? Quem teve razão?


A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS-1: NAVE "PURA AVENTURA"

Os dezassete gambozinos 
alunos de Cruz Papão
vão de excursão 
a bordo de uma nave espacial
especial
chamada Pura
Aventura.
Nos lugares de trás
há quem se comporte mal:
 
"-- Professor Papão, olhe a Flana
a estragar-me a barbatana!...
 
-- Flana, larga a barbatana
do teu colega Guerrigo!
 
-- Mas ele meteu-se comigo
primeiro, professor Papão...
Chamou-me Dentes de Peixe, 
agora que não se queixe!"
 
A Flana e o grande Guerrigo 
vão de castigo para o banco da frente,
de costas para toda a gente. 
 
À Flana doem-lhe os dentes
com que deu a dentada:
e se a barbatana estivesse 
envenenada?...

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS- 2: GRANDE HOTEL PEREGRINO

 GRANDE HOTEL PEREGRINO
----- RESTAURANTE----- 
 
Neste restaurante é proibido:
Patinar nos cortinados,
estejam sujos ou lavados;
usar gravata às avessas,
com as riscas postas
nas costas;
sorver a sopa
e cuspir para os lados,
assustando os criados
que transportam travessas.
 
Também é proibido:
Armar em dragão,
lançar fogo pela boca,
dançar em cima da colher,
esconder o garfo na poupa
e meter a faca à cinta.
 
Caro hóspede gambozino,
cumpra as regras, não consinta
que se apague a boa fama
do Grande Hotel Peregrino,
onde com pouca despesa
acha cama, mesa e ensino!

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS- 3, NO QUARTO 2100

 "Quem boa cama desfaz, nela se deita" 
(provérbio gambozino)

No quarto dois mil e cem
do Grande Hotel Peregrino,
certo Peludo Gambozino
sabe o que tem a fazer:
desfazer
a cama muito desfeita
até ficar perfeita
com o lençol de cima
posto por baixo
do lençol de baixo,
cobrindo o feio tapete
que serve bem de enxergão
na vez do lindo colchão
que no chão faz de tapete.
Edredão acolchoado
completará o conforto,
deitado aos pés, enrolado,
a fingir de tigre morto.

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS 4: CEIA CLANDESTINA + TERRAÇO

À sorrelfa na despensa
do Grande Hotel Peregrino,
Flana, Siclana, Viola,
Violino e Mais-Pequenino
comem cascas de cebola
com pevides de pepino.
 
-- Que horas serão, ó primos?

-- P'ra aí meia-noite e meia.
Está mesmo boa, esta ceia!


E depois da ceia, nem todos os gambozinos se foram deitar...


Violino, Mais-Pequenino,
Fava, Baba e Arregaçado
no terraço iluminado
-- á-hua! á-hua! --
uivam à lua.


Quantos nomes de Gambozinos conheces tu agora?

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS- 5: O MAIS-PEQUENINO LAVA A CARA

Soa o gongo com estrondo!

Horas de pequeno-almoço

no Grande Hotel Peregrino!

Atrasado, o Mais-Pequenino

lava a cara sem sabão:

esfrega-a primeiro com cuspo

e depois puxa-lhe o lustro.

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS- 6: PEQUENO-ALMOÇO GRANDE HOTEL

 -- Já não há chá!

-- E café

ainda haverá?

-- Também não há!

-- E leite?

-- Alguém o bebeu...

-- Não olhes assim 

p'ra mim,

Meu,

não fui eu,

foram aqueles além!

-- Quem? Nós?...

Nós é que não,

atenção!,

aqui a gente só curte

iogurte!

Há mais um nome a acrescentar à lista... Qual é?

(Solução: Meu).

A excursão dos gambozinos 7-8: MIRADOURO + TORREÃO DO MEDO

Miradouro 
 
Miradouro sobre o mar,
como barquinho sem remos...
-- Adeus, mar largo. oceano,
pode ser que para o ano
cá voltemos!
 
 
0:32

Torreão do Medo
 
Quando a excursão gambozina
trepa ao Torreão do Medo,
fogem aves de rapina
a esconder-se no arvoredo.

Tirado do seu sossego,
um fantasma sem pescoço
salta e mergulha no fosso.

Uma inocente serpente
logo o imita. Coitadinha,
passa a serpente marinha!
 
1:04


A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS 9: SALA DOS ARREPIOS

A barulheira dos gambozinos a subirem as escadas, falando alto e batendo os pés, incomoda os velhos monstros do Torreão do Medo que preferem nem aparecer. 
Fica apenas a Bicha das Sete Cabeças, a qual  por ser de pedra e estar  embutida na parede não pode fugir para o telhado. Os gambozinos estacam diante dela, maravilhados. Todos querem fazer festinhas às sete horríveis cabeçorras.
-- Que lindos gatos siameses! 
-- Bss, bss, bss... Vocês arranham?
-- Arranhamos só às vezes...-- respondem as sete enormes línguas das sete enormes bocas.
Os gambozinos despedem-se: 
-- Adeus, coisinhas fofas!
Estão desejosos de passar à famosa Sala dos Arrepios:
Alta, vazia, sombria, 
o seu bafo a pedra podre
entontece e arrepia! 
A sala merece a fama que tem. Apanhados por sucessivas ondas de arrepios, dezasseis gambozinos de cabelos em pé dão uma volta lá dentro e vão-se logo embora enregelados e agoniados, conduzidos pelo professor Papão que não pára de espirrar. 
Fica esquecido para trás o Mais-Pequenino. Está a um canto, feliz da vida! Os arrepios não o afligem nada, são muito altos, passam-lhe por cima. Quanto ao bafo a pedra podre, ele nem o sente porque ainda vai a arrotar às cascas de cebola que ceou na véspera.
O Mais-Pequenino acaba de descobrir uma tabuleta minúscula que diz assim:
SOLAR DOS RATOS MARQUESES   
A entrada está camuflada. 
Chaminé não é. 
Porta não é, nem cancela, 
nem postigo nem janela. 
Rente ao chão palácio encobre. 
Só quem procura a descobre!
Outros gambozinos maiores  talvez não conseguissem achar ali entrada nenhuma -- mas o Mais-Pequenino, por ser tão baixinho, dá logo com uma abertura na base da parede. "Será uma toca?", pensa ele.  Estende um dedo e tlim! tlim!, uma sineta tilinta lá dentro. 
O Mais-Pequenino encolhe-se quanto pode e entra -- dando sem querer uma valente cabeçada na sineta: tlim-tlim! tlim! tlim! tlim!
 

 
 
 
A história continua em:
 https://violetaemvozalta.blogspot.com/2021/06/a-excursao-dos-gambozinos-episodio-10.html

A EXCURSÃO DOS GAMBOZINOS-10: NA TOCA DOS RATOS MARQUESES + REGRESSO

 NA TOCA DOS RATOS MARQUESES

O gordo Ratão marquês

e a marquesa Ratazana

bebem tisana de poejo

que é realmente excelente 

para indigestões de queijo.

Reclinados em cotão,

meio entalados pela mesa,

o marquês e a marquesa

jogam gamão toda a tarde,

até soar o alarme.

E quando o alarme toca

é que alguém entrou na toca.

 -- Quem és tu?

-- Eu sou o Mais-Pequenino.

-- O mais pequenino quê?

-- Mais-Pequenino gambozino

português, senhor marquês.

 -- Ó Ratão, saberá ele

jogar gamão?

-- Tu sabes jogar gamão?...

-- Gamão não, senhor marquês.

Infelizmente jogo só

dominó...

Lá fora, o professor Papão e os seus alunos afligem-se porque não encontram o Mais-Pequenino. Finalmente ele aparece, com um troféu de prata na mão: uma taça!
-- Mais-Pequenino, onde estiveste?...
-- Que atraso é este,
menino gambozino?!
-- Tive de ganhar um campeonato
de gamão de rato...
 
Já quase de noite, durante a viagem de regresso, o professor Papão fecha os olhos e rola a cabeça no assento, perdido de sono.
-- Professor Papão, está cansado?
-- Não, meus meninos, não.
Acho até que tenho pena
que tenha sido a viagem
tão pequena!

                                                                            FIM




O rato

O rato roeu a rolha

da garrafa do rei da Rússia.

Rara astúcia foi a sua,

roeu metade da rolha

e depois fugiu para a rua.

 

Mas o  rei da Rússia,

que estava à varanda 

com o rei da Holanda,

viu-o passar e chamou-o:

 

-- Ó ratinho sem vergonha,

para onde levas tu a rolha? 


-- Levo-a para o lago.

Se me faltar pé, 

agarro-me a ela logo,

já não me afogo!

 

Violeta Figueiredo - Fala Bicho, Porto Editora


Ilustração de Violeta Figueiredo

Como se pode ver, o rato era ruivo. Tingia o pêlo com caldo de casca de cebola...

O Gafanhoto

 

 

 





Josezinho Gafanhoto,

piloto aviador,

bafejado pela aragem

descola só com um motor.

É manhã e o sol brilha.

Todos os barcos da ilha,

há muito presos no porto,

vibram à sua passagem:

"Lá vai José Gafanhoto

para mais uma viagem!" 

                                                     (Fala Bicho, Porto Editora)


 

 



 

 

 https://discoverportugal2day.com/ilha-do-corvo/

 

Avó Loba

Sol de outono, sol de sono, 

corre o rio mais cinzento. 

Parada à beira da gruta, 

Avó Loba escuta o vento 

e adivinha já a neve 

que cairá muito em breve.